No início da pandemia, quando os primeiros países começaram o isolamento, a ONU Mulheres lançou um alerta mundial advertindo autoridades políticas, sanitárias e organizações sociais sobre a forma como a pandemia da Covid-19 e o isolamento social poderiam afetar as mulheres – tanto em relação a sobrecarga de trabalho como através do aumento dos índices de violência doméstica e diminuição de acesso a serviços de atendimento.
O que aconteceu? No Brasil, só no período de março a abril, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), houve um aumento de 22%. Em relação aos postos de trabalho, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) realizada pelo IBGE, aponta que, no início da pandemia, 7 milhões de mulheres deixaram seus postos de trabalho, 2 milhões a mais do que o número de homens no mesmo período.
A história da humanidade está aí para provar que toda crise social atinge com mais intensidade as mulheres e dessa vez, claro, não seria diferente. Tanto que Simone Beauvoir, escritora, intelectual, feminista, ativista política já havia nos alertado com a frase “nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.”
Por que escrevo isso hoje? Porque a pandemia persiste e as mulheres, em sua maioria, é que estão sobrecarregadas. E, ainda que eu, pessoalmente, não esteja, eu não posso ignorar o que acontece a minha volta. Não é comigo hoje, mas poderia ter sido. Ou pode ser um dia, já que faço parte dessa sociedade machista e desigual.
Mas vamos por parte: esta semana um homem me disse que o maior impacto que a pandemia causou em sua vida foi que ele passou a lavar louça. E ainda reclamou que tem louça toda hora e o trabalho doméstico não para. Na hora eu pensei: quanto privilégio! Pessoas perderam familiares vítimas de covid, perderam empregos com a crise o problema dele é lavar louça. Depois pensei na mulher, casada com esse homem, que fazia todo o trabalho doméstico, além de trabalhar fora e cuidar de dois filhos pequenos. E hoje continua com a maior carga de trabalho, como podemos perceber, embora o marido esteja em casa.
Em outra ocasião um homem me disse que, apesar da empresa em que trabalha ter adotado o trabalho remoto ele pediu autorização para continuar trabalhando presencial, assim que foi possível, pois em casa com duas crianças ele não estava conseguindo se concentrar no trabalho. Adivinhem vocês? Ele é casado e a mulher também trabalha, mas ela teve que dar conta da casa, do trabalho e dos dois filhos sozinha enquanto o ilustríssimo homem precisava de concentração.
São casos “bobos” esses meus. Os homens não espancam suas mulheres, não agridem os filhos e (olha que maravilha!) lavam até a louça. Mas conseguem entender aonde quero chegar? Provavelmente essas mulheres não estão conseguindo manter a produtividade no trabalho – tudo bem, estamos numa pandemia e, claro, não dá para esperar o mesmo desempenho – mas é justo que cuidem da vida escolar dos filhos sozinhas, da casa e do trabalho enquanto os homens não assumem a divisão de tarefas?
Antes da pandemia, segundo dados do IBGE de 2018, as mulheres já dedicavam o dobro de horas semanais ao trabalho doméstico e cuidado com outras pessoas, se comparadas aos homens. Além disso, o Brasil já era o 5º país do mundo no índice de feminicídios.
Em relação a publicação de artigos científicos, um levantamento do projeto brasileiro Parent in Science indica que 40% das mulheres sem filhos e 52% das mulheres com filhos não concluíram seus artigos no primeiro trimestre de 2020, contra 20% e 38% de homens na mesma situação. A média de manuscritos tendo mulheres como primeira autora foi de 37% entre 2016 e 2020, mas caiu para 13% no 1º trimestre de 2020.
A desigualdade marca a trajetória da vida das mulheres. Existe uma dinâmica sexista no cotidiano dos domicílios, que está diretamente ligada ao machismo estrutural presente na nossa sociedade, e isso ficou ainda mais evidente neste momento de pandemia.
Precisamos mudar o rumo dessa história.
Crônica publicada em 2 de novembro de 2020 no Amor Crônico.